Galeria Matéria Plástica
Brasília, 2020

Não sei se sou uma pessoa de “alma formada”, requisito que Clarice Lispector sugere ao virtual leitor do seu livro A Paixão Segundo GH, logo na introdução. No entanto, ao ousar ilustrá-lo compreendi profundamente que “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente — atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar”.

Dividi as ilustrações dos fragmentos do livro em dois tomos. No primeiro, conforme convida a autora, eu me senti de mãos dadas com GH, mesmo que hesitante. Para realizar estas ilustrações explorei como pude todo meu repertório como desenhista e pintora. Numa estratégia metonímica, substituí GH pela representação (nunca bem sucedida) das marcantes mãos, boca e olhos de Clarice Lispector. Olhos sempre instigantes que, como “um dobre”, também representam a barata.

No segundo tomo, esse apoio/luta da mão sucessivamente requerida não é mais dirigido ao leitor e sim a um amor do passado. GH trava então uma vertiginosa jornada herege e divida, amorosa e erótica, que eu não me sentia capaz de ilustrar com o repertório que tinha. Frustrada, eu queria ser Gustave Doré! E então, “eu avancei mais um passo” e as discretas paródias do primeiro tomo passaram a ser meu principal recurso.

Em suma, não fiz esse trabalho como uma ilustradora stricto sensu, mas como uma leitora que aceitou o convite de dar a mão à GH em sua jornada, comentando sua própria experiência de leitora e ciente que “a linguagem é meu esforço humano”.

Livretos de apoio à visita da exposição contendo as ilustrações e seus respectivos fragmentos da obra A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, bem como notas sobre as paródias e outras referências: livros, poesias, canções e filmes.


Publicação

A paixão de Clarice no traço, Blog do Severino Francisco – Correio Braziliense, 03.08.2020

“A artista plástica Terezinha Losada estabelece uma desconcertante conexão entre a personagem feminina do romance ʽA paixão segundo G.H.ʼ e a que nós vivemos com com o coronavírus. O inimigo de G.H. é uma barata, mas a luta contra o inseto a leva a revelações fulminantes. Depois da experiência, G.H. se insere no mundo, no amor e no cosmos de uma maneira inteiramente renovada. Renasce e nasce. 

Clarice não foge das experiências mais duras e extremas. No entanto, não é depressiva ou negativa, sempre busca transcendência. O contato com as suas ficções costuma provocar impactos e abalos sísmicos existenciais.

Quando era adolescente, Terezinha leu a ficção ʽA paixão Segundo G.H.ʼ pela primeira vez. Ficou muito tocada pela narrativa provocadora, que passa do espiritual para o afetivo em um átimo. Sentiu-se profundamente mexida nos medos desejos e nas fantasias de mulher. 

Porém, quando chegou na parte em entra uma barata na história, rasgou o livro e jogou fora.  Aos 30 anos, ela  tentou voltar à leitura, mas não deu conta. Tem fobia de barata. Quando completou 60 anos, em 2018, resolveu ler o livro e colocou para a si mesma um desafio: ilustrar ʽA Paixão Segundo G.H.ʼ Como transformar em imagens uma aventura afetiva e espiritual? 

ʽPerdi alguma coisa que me era essencial, e que já não é maisʼ, diz a personagem G.H.. ʽNão não me é mais necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé. Essa terceira perna eu perdiʼ. A biografia espiritual, praticamente, elimina a ação e se concentra nos devaneios de mulher em frente a uma barata e a um armário. 

Terezinha precisou fazer um esforço de imaginação simbólica. (…) Visualizou G.H. pelas linhas da boca e dos olhos de Clarice. Na primeira parte utilizou o triangulo como representação da terceira perna. Na segunda usou o círculo. Terezinha usou os olhos para representar a barata. (…)

Embora tenha nascido, quase por acaso, em Londrina, Terezinha se considera candanguíssima. (…) Traduzir a palavra arrebatadora de Clarice em imagens foi também uma oportunidade de estabelecer uma conexão com Brasília. Clarice nunca escreveu com tanto assombro sobre qualquer outra cidade.”